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quarta-feira, 23 de abril de 2008

A grande arte e a dor.

"Ela é morena, toda tatuada, desequilibrada, frágil. E é um gênio atormentado. Voz incrivelmente forte, que remete às negras americanas, e a virtude não apenas de cantar como de compor.

Vejo na TV Amy Winehouse na entrega do Grammy. Ela foi impedida de ir para os Estados Unidos, onde o prêmio foi entregue. Não lhe deram o visto, pelo histórico de drogas e bebidas alcoólicas. De Londres, por satélite, participou da premiação.

Levou cinco prêmios, entre os quais o de melhor música, “Rehab”. They tried to make me go to rehab/I said no, no, no. Tentaram me internar numa clínica de reabilitação, e eu disse não, não, não.

Me contam que há na internet uma bolsa de apostas para ver quanto tempo Amy, a pequena grande Amy, tão autodestrutiva, vai durar.

De alguma forma, em sua angústia jovem tão pungente, ela me lembra Kurt Cobain. Aos 28 anos, ele se deu um tiro na boca, um método altamente eficiente para se matar. Hemingway fez o mesmo.

Sei lá. O tormento pessoal é a essência do gênio de Amy Winehouse. Se ela fosse feliz, provavelmente comporia canções tolas de amor. Silly love songs.

Proust escreveu que só nos períodos de devastação íntima fez grande arte. A grande arte é infeliz, atormentada, como se vê em Amy. A arte barata, como a dos pagodes, é festiva. Tenho uma biografia de Isadora Duncan, a bailarina, nas mãos. “Toda arte foi irrigada pelas lágrimas da dor”, disse Isadora. “Vocês tinham de tê-la visto”, é o que diziam de Isadora, para a posteridade, aqueles que a tinham visto.

"O grande artista é forjado na dor, e isso com certeza não é um fato agradável na vida pessoal"

A capa da última edição de ÉPOCA mostra o poder paradoxal da tristeza, sobretudo na arte. Eis uma discussão fascinante. O grande artista é forjado na dor, e isso com certeza não é um fato agradável na vida pessoal. Beethoven não seria Beethoven sem a tormenta interna. Lennon. Lennon jamais superou a morte da mãe, Julia, para a qual compôs várias músicas. Da melódica e nostálgica “Julia”, ainda na era Beatle, à dramática e pungente “Mother”, na fase individual. Lennon dizia tê-la perdido duas vezes. Uma quando ela, jovem desajustada, o entregou bebê à irmã mais velha, Mimi. Outra quando, ele adolescente, ela retornou a sua vida para logo depois ser atropelada e morta numa rua traiçoeira de Liverpool. My mummy is dead/I can’t understand. Minha mãe está morta, e não consigo entender, cantou Lennon numa outra canção (mais propriamente vinheta).

Amy. A delicada Amy. A talvez perdida Amy. Numa outra música que não “Rehab”, ela diz: Love is a losing game. O amor é um jogo de perda. Alguém discorda? Me pergunto aqui, em vão, o que vai ser dela, e eu gostaria apenas que de alguma forma ela fosse protegida da ânsia de se autodestruir, e que vivesse o bastante para mostrar aos filhos, aos netos quanto ela, tão diminuta ali diante dos homens grandes do coro em sua dança esplêndida, se agigantava no palco ao microfone. Mas para tanto Amy teria de ser mais alegre. E teria, mais ainda, de desmentir Isadora Duncan e sua tese consolidada pelos fatos de que só a dor produz a grande arte."

Texto de: FÁBIO HERNANDEZ (revista época online - 10?03/2008)

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